A história que vou contar pra vocês aconteceu em 2001, o primeiro ano do terceiro milênio; o ano da Odisseia no Espaço, da vaca louca, do apagão; o ano em que a Wikipedia foi lançada e permitiu que eu pesquisasse tudo isso; e também o ano em que eu e outras 9 mulheres fomos passar o carnaval em Ouro Preto, cidade histórica de Minas Gerais.
Eu já não morava mais no interior desde que havia ido para a faculdade, mas continuava passando o carnaval em Garça todos os anos. Era sempre delicioso. Pulávamos em roda abraçados uns aos outros no salão de baile do Garça Tênis Clube até às 5 horas da manhã durante as 5 noites de carnaval. A banda tocava ao vivo no palco todas as marchinhas de carnaval, enredos de escola de samba e músicas do Netinho que abusavam das vogais.
Mas esse ano foi diferente... O carnaval do Tênis acabou e decidimos pela primeira vez passar longe da minha cidade. A viagem foi de ultima hora. A amiga da minha amiga da faculdade tinha o contato de uma república la, minha amiga me chamou, eu chamei outras amigas da minha cidade, elas chamaram as amigas das amigas, e no final éramos um bando de mulheres que praticamente nem se conheciam e estavam viajando juntas.
Nessa época, eu estava trabalhando em uma consultoria, e estava em um projeto no Rio de Janeiro. Já tinha sido o máximo eu participar dos ensaios de escolas de samba e dos bloquinhos de carnaval por lá, quando ainda nem era essa modinha de hoje. Nessa época eu era "xófen" e ainda adorava essa vida de consultora, em que a gente viajava muito e ficava em hotel, jantava em restaurantes chiques e só andava de táxi e de avião. Morava em um flat em Ipanema a uma quadra da praia, tinha roupa lavada e serviço de quarto pagos pela empresa. Cada vez que eu voltava pra São Paulo após o término de um projeto, entrava em choque de realidade, por ter que lavar louça, limpar a casa e andar de ônibus de novo, afinal, eu estava bem no começo da minha carreira. Difícil voltar para a vida de pobre quando você já experimentou o glamour...
Mas voltando à história... Na sexta-feira de Carnaval, ao invés de pegar o voo de volta pra São Paulo, voei pra BH, e de lá peguei uma van para Ouro Preto, onde eu passaria o carnaval. Eu nem imaginava qual era o esquema do carnaval de lá, mas descobri as repúblicas são bem tradicionais e geralmente ficam em casas tombadas pelo patrimônio histórico. As mulheres ficavam em repúblicas masculinas, os homens em repúblicas femininas. Então eu e minhas 9 quase-amigas fomos para uma república de 12 homens, que era uma casa gigante e antiga em pleno centro da cidade histórica. Dormíamos todas espalhadas em colchões no chão de um quarto, que a cada dia era frequentado por pessoas diferentes. Numa dessas noites, ouvi um infiltrado dizendo à minha amiga: "eita mulher difícil, eu encosto e ela afasta, eu encosto e ela afasta", só porque ela no queria dormir de colherzinha com ele.
O carnaval é de rua, mas confesso que quase nem saíamos da casa o dia inteiro. 2001 também foi o ano em que o funk começou a fazer sucesso, com a "Dança da Motinha (que lançou o termo popozuda), "Um Tapinha não Dói (antes mesmo da Lei Maria da Penha) e o "O Baile Todo". Ah, que saudade das letras de funk dessa época... eram dignas de uma análise musical!
Enfim, em uma era pré-Spotify, quando as músicas eram baixadas em mp3 e gravadas em um CD (cabiam 200 musicas!!!), vocês podem imaginar que o repertório não era muito extenso. Ou seja, ouvimos as mesmas músicas desde sábado até a quarta-feira de cinzas, quando o Carnaval acabou. Além do funk, outro CD que tocava incessantemente era o do Tijuana, e as músicas que mais me lembro são a da "Tropa de Elite" (muito antes do filme fazer sucesso) e "Eu vi Gnomos" (que eu acabei até vendo também depois de uns dias), além de "Cabrobó" do Tianastácia, quando aprendi que Steinhäeger com cerveja faz pirar, e se um cara nasce mané, cresce mané e morre mané, mané.
E era assim que ficávamos o dia inteiro na república, bebendo cerveja e ocasionalmente tomando uma canja, o que nos deixam constantemente embriagadas pelo excesso de álcool e pela ausência de comida. Todo dia, às 7h da manhã, o dia já começava com o Bonde do Tigrão tocando na boate da casa, um quarto que havia sido transformado em balada apenas com a retirada de todos os móveis e a inclusão de um som potente algumas luzes estroboscópicas. Na fila do único banheiro da casa para lavar o rosto e escovar os dentes (sim, porque alguém já viu casas antigas terem banheiros suficientes?), já ganhávamos um copo americano de cerveja. E assim ficávamos até às 5h da manhã do dia seguinte, quando íamos dormir por 2 horas e acordar novamente no mesmo ritual.
Me lembro que ficávamos o dia inteiro em cima de um banco de alvenaria que havia no quintal da casa, dançando as mesmas músicas, da única playlist que tocava repetidamente. E também éramos, o dia todo, servidas pelos "bixos", os calouros escravos que tinham acabado de passar na Universidade Federal de Ouro Preto, a UFOP, e que deveriam garantir que absolutamente todos os copos da casa estivessem sempre cheios.
Ainda não entendo como não entrei em coma alcoólico neste feriado. Acho que eu nunca bebi tanto na minha vida, nem antes nem depois desse carnaval. Mantive um estado de embriaguez constante até a quarta-feira de cinzas, quando o carnaval acabou e até tremia pela abstinência do álcool. Nesse dia, fui conhecer a igreja do Aleijadinho, só pra não dizer que não fiz nenhum passeio turístico em Ouro Preto, e também pra pedir perdão por todos os pecados cometidos durante o carnaval.
Com toda essa em bebedeira, comecei a ter alucinações. Beijei todos os bixos da república (como forma de agradecimento pela cerveja servida com tanta eficiência), além de alguns agregados que
apareciam na casa. Um deles, disse que era dançarino profissional e me chamou pra dançar forró no quintal, o que aceitei feliz da vida. Ele me rodopiou tanto, tanto, que no meio da dança ele caiu de costas no chão e eu caí deitada bem em cima dele. Ele deve ter ficado com alguns hematomas, mas em mim não doeu nada, já que eu tive um colchãozinho pra me amortecer. Então, como forma de agradecimento, tive que beijá-lo também.
Mas o melhor desse carnaval, além da bebedeira e da beijoqueira, foram as histórias que passamos a contar desde essa data, e até hoje entre minhas amigas. Eu ganhei o "troféu pérola", pela quantidade de baboseiras que falei sem raciocinar direito. Uma delas foi, em um momento de copo vazio: "eu sem meu copo sou como Sansão sem o seu cabelo". Em outra ocasião, depois de ouvir as mesmas músicas por todo o tempo, me encostei num pilar do quintal, fechei os olhos e, com a mãozinha pra frente, dando um rolé na minha moto envenenada, cantei "a dança da motinha", em êxtase.
Mas a história que vai ficar pra eternidade foi a do "Brinde a Garça". Como era o primeiro carnaval que passávamos longe da nossa cidade, uma das minhas amigas, também constantemente embriagada, não parava de falar, a cada copo de cerveja que bebia (que eram muitos, diga-se de passagem): "Vamos brindar Garça?". No principio, todas brindávamos, felizes, mas no quarto dia, ou no Trecentésimo Sexagésimo Sétimo brinde, eu já não aguentava mais brindar aquela cidade que nem um carnaval decente havia oferecido a seus habitantes.
E, no alto grau da bebedeira, também descobri que a paciência tem um limite bem mais baixo. Ao, ouvir "Vamos brindar Garça?", "Vamos brindar Garça?", "Vamos brindar Garça?" infinitas vezes, dei um tapa na cara da minha amiga, que foi chorar no banheiro no estilo mimimi (afinal, um tapinha não dói). Nesse momento, tive um lapso de lucidez e me arrependi do que tinha feito. E então eu a abraçava, dava milhares de beijos na sua bochecha pra sarar e pedia mil desculpas.
Amizade refeita, refil de cerveja no copo, eis que tive uma brilhante ideia: levantei o copo, e em tom de "vamos fazer as pazes", entoei: "Vamos brindar Garça?". Ao que ela respondeu, sem titubear: "agora não vou brindar mais". E então, voltando ao meu estado natural de embriaguez, respondi: "AGORA BRINDA, FIADAPUTA!"
O carnaval passou, as histórias ficaram, e ainda somos amigas (já faz quase 30 anos). Até hoje, ainda brindamos a Garça todas as vezes que nos encontramos, e adivinha o nome do nosso grupo de Whatsapp?
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