Recentemente, faleceu o famoso psicólogo israelense Daniel Kahneman, com exatos 90 anos de idade. Confesso que fiquei bastante triste quando ouvi esta notícia. Fazia apenas alguns meses que eu havia concluído a leitura de sua obra-prima, o livro “Rápido e Devagar” (em inglês: Thinking, Fast and Slow), que, por sinal, eu li beeem devagar (desculpem-me o trocadilho).
Kahneman, apesar de ser um psicólogo, ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 2002, por sua contribuição sobre a tomada de decisão em investimentos baseada no comportamento humano. Sua principal conclusão é que nossa mente frequentemente toma decisões baseadas na emoção, inclusive quando se trata de investimentos financeiros, e esse comportamento pode nos levar a tomar decisões financeiras equivocadas.
Essa teoria é baseada no funcionamento do nosso cérebro, em que duas formas de pensar coexistem: o Sistema 1, rápido e intuitivo; e o Sistema 2, devagar e racional.
O Sistema 1 existe para que possamos tomar decisões rapidamente, sem necessidade de dispender muita energia mental. Ele funciona no piloto automático, de forma inconsciente e involuntária. O problema é que as escolhas que fazemos pelo Sistema 1 podem nos levar a julgamentos e vieses cognitivos e, consequentemente, a decisões impulsivas e equivocadas.
Em contrapartida, o Sistema 2 exige concentração e é capaz de formular um raciocínio lógico ou um cálculo mais complexo. Ele consegue seguir regras e processos, compara diversas opções e faz escolhas a partir de critérios objetivos. Pode realizar tarefas que nunca realizamos antes, desde que uma de cada vez. O Sistema 2 é preguiçoso e só é ativado quando o Sistema 1 não possui uma resposta rápida para aquele problema. Entretanto, quando ele assume o controle, geralmente tem a última palavra.
A divisão de trabalho entre o Sistema 1 e o Sistema 2 ocorre naturalmente, com o objetivo de otimizar o esforço do cérebro e gastar menos energia mental (lei do menor esforço). Alguns exemplos:
- Quando realizamos apenas uma soma simples, como 2+2, nosso Sistema 1 saberá responder rapidamente. Já uma multiplicação mais complexa, como 19x47, demandará que o Sistema 2 entre em ação.
- Porém, uma pessoa acostumada a realizar cálculos complexos pode executar esta multiplicação através do Sistema 1. Isso acontece porque, à medida que nos especializamos em uma atividade que demanda maior raciocínio, ela passa a ser realizada sem esforço, e por isso pode ser comandada pelo Sistema 1.
- Como o Sistema 2 não consegue fazer várias tarefas ao mesmo tempo, fica mais difícil realizar o mesmo cálculo complexo enquanto aprendemos a dirigir, por exemplo. Mas talvez possamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo, quando tivermos prática em pelo menos uma delas e pudermos executá-la através do Sistema 1.
- O Sistema 1 exerce maior influência em nosso comportamento quando o Sistema 2 está ocupado. Por isso, nosso autocontrole é enfraquecido e ficamos mais suscetíveis a um chocolate ou a um copo de cerveja quando realizamos uma tarefa difícil que nos deixa esgotados.
- Já o Sistema 2 é encarregado de controlar os impulsos do Sistema 1, porém este autocontrole exige esforço mental. Quando vemos uma figura que causa ilusão de ótica, o Sistema 1 rapidamente irá sucumbir ao erro, mas se nos concentrarmos e deixarmos o Sistema 2 controlar a situação, poderemos dominar o impulso inicial e enxergar a figura da forma correta.
- Outro exemplo é que o Sistema 1 estima a importância dos fatos de acordo com a facilidade com que ele consegue recuperá-los da memória. Por isso, as pessoas se influenciam mais com os temas que são divulgados com maior frequência na mídia e nas redes sociais, principalmente quando estão cansadas (já que o Sistema 2 é preguiçoso e não irá validar os fatos).
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Um dos termos mais importantes do livro é o acrônimo WYSIATI (What You See Is All There Is), ou "o que você vê é tudo o que existe". Esse termo reflete a visão limitada que temos a partir do que conseguimos enxergar, tomando decisões com base apenas no que conhecemos e ignorando as informações que não conhecemos. Com isso, nosso Sistema 1 tira conclusões precipitadas utilizando informações parciais sobre um determinado tema, o que muitas vezes resulta em opiniões enviesadas.
O livro detalha vários destes cenários utilizando o conceito de heurísticas, ou processos mentais que utilizamos irracionalmente para encontrar respostas rápidas para perguntas difíceis. Esta é uma estratégia eficiente do cérebro para não gastarmos muito tempo ou esforço com escolhas que já conhecemos. Na maioria das vezes funciona muito bem, porém pode também produzir respostas imperfeitas quando as opções não são tão conhecidas assim. Por exemplo:
- Heurística de julgamento - quando julgamos a competência de uma pessoa pela aparência ou quando simpatizamos (ou antipatizamos) com uma pessoa no primeiro contato, estamos utilizando o Sistema 1 incondicionalmente com base em evidências ocultas que não conseguimos nem mesmo explicar.
- Heurística de afeto - quando gostamos de alguém (seja um amigo ou um político), nosso Sistema 1 tende a enxergar apenas suas qualidades e ignorar os seus defeitos. Ou ainda, quando gostamos de alguma coisa (um carro ou um smartphone, por exemplo), também pensamos apenas nos benefícios, mesmo quando eles são iguais aos da concorrência. O oposto também acontece: quando não gostamos de algo ou de alguém, pensamos somente em suas desvantagens e ignoramos suas vantagens.
- Heurística da disponibilidade - quando julgamos a frequência de uma situação de acordo com a facilidade com que o Sistema 1 recupera aquela informação. Se alguém nos pergunta se o percentual de pessoas divorciadas está aumentando ou diminuindo, provavelmente iremos responder com base nas pessoas que conhecemos. Uma pessoa que tem medo de voar de avião, geralmente se recorda dos acidentes aéreos que foram noticiados recentemente, mas não que o risco de um acidente de carro é muito maior.
- Heurística do humor - quando nos perguntam sobre a nossa satisfação com a vida, tendemos a responder avaliando nosso humor naquele momento. Isto acontece porque nosso Sistema 1 recupera uma pequena amostra de ideias disponíveis na memória (na maioria das vezes recentes), ao invés de analisar as diversas áreas da nossa vida durante um grande período de tempo. Por isso, frequentemente avaliamos nossa vida de acordo com eventos recentes de muita alegria ou tristeza (como ganhar na loteria ou sofrer um acidente) e ignoramos os longos períodos anteriores de felicidade ou sofrimento moderado.
Estas e outras heurísticas citadas no livro podem nos induzir a erros graves de julgamento, e também nos levar a fazer escolhas equivocadas. Apesar das heurísticas serem atribuídas ao Sistema 1, quando o Sistema 2 endossa uma resposta sem se esforçar muito, ela se torna uma crença, e a partir daí será muito mais difícil mudarmos de ideia sobre aquele assunto. Por isso, é importante identificar as situações em que os erros são possíveis e pedir ajuda ao Sistema 2 (por exemplo, coletando outras informações em fontes confiáveis, adquirindo novos aprendizados ou estimulando novos pontos de vista) para podermos tomar decisões de forma objetiva. Desta forma, podemos mitigar nossa visão deturpada do mundo, sem nos limitarmos apenas àquilo que conhecemos.
Nada na vida é tão importante quanto você pensa que é quando você está pensando a respeito.
Quanto aos investimentos financeiros, o livro aborda as diversas probabilidades de perdas e ganhos na avaliação de uma oportunidade. Porém, até em situações aparentemente objetivas, como uma transação financeira, vemos que o Sistema 1 possui uma grande participação na decisão final. Nossa aversão à perda geralmente é muito mais dolorosa do que nossa gratificação ao ganho, mesmo quando comparamos perdas e ganhos do mesmo valor. Por exemplo, ficamos muito mais tristes quando perdemos R$ 1000 do que ficamos felizes quando ganhamos os mesmos R$ 1000.
Em relação às metas, nos empenhamos mais em evitar ficar abaixo da meta do que em superá-la. Não atingir a meta é uma perda que devemos evitar a qualquer custo, enquanto superar a meta é um ganho adicional que não merece tanto esforço. Ou ainda, no caso dos riscos, tendemos a exagerar o peso dos riscos com pouca probabilidade de ocorrer e pagamos um valor muito maior para eliminá-los completamente. Por exemplo, somos predispostos a pagar a franquia mais alta do seguro para garantir a nossa segurança. Mesmo quando nosso Sistema 2 sabe que este pagamento adicional não vale a pena, nos deixamos levar pela emoção e o Sistema 1 ganha o jogo.
Por isso, muitas vezes preferimos garantir o ganho certo de um valor menor que o esperado (por exemplo, 100% de chance de ganhar R$ 1000) a uma probabilidade menor de ganhar um valor superior (80% de chance de ganhar R$ 1200). Para as perdas, o efeito é o contrário: nossa preferência geralmente será por uma probabilidade menor de perder um valor maior em relação à certeza de perder um valor menor. Ou seja, somos propensos à aversão à perda no caso de ganhos e a buscar o risco no caso de perdas.
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Concluindo, o Sistema 1 é um importante mecanismo utilizado por nosso cérebro para economizar tempo e energia ao lidar com a alta quantidade de informações, e é a origem de grande parte das decisões que tomamos. Na maioria das vezes, ele toma decisões coerentes e produz soluções rápidas e efetivas para nossos desafios diários. Mas também é responsável por muitas escolhas equivocadas que fazemos, podendo levar a julgamentos, vieses, falácias ou ilusões, devido à sua característica intuitiva, involuntária e inconsciente.
Precisamos aprender a reconhecer as situações em que estes erros cognitivos são prováveis e ativar o Sistema 2, para que ele possa pensar racionalmente em uma solução, mesmo que a resposta ocorra mais devagar. Esta decisão consciente é importante principalmente quando o risco é alto ou quando nossa decisão possui um grande impacto na nossa vida e na vida das demais pessoas.
Tudo faz sentido quando visto em retrospectiva.
Eu poderia citar aqui muitos outros exemplos interessantíssimos do livro, mas vou deixar para que vocês leiam as 608 páginas e tirem suas próprias conclusões. Como eu disse no início, demorei muito para concluir a leitura. É um livro denso, intenso e científico. Uma mistura de lógica com psicologia do comportamento que demandava 100% da minha atenção.
Ouvi uma entrevista com o autor recentemente em que ele relata que algumas teorias citadas no livro se provaram incorretas (assim como ele mesmo discute no livro sobre a efetividade de teorias anteriores). Também já ouvi psicólogos renomados criticarem este livro, por não confiar nas pesquisas citadas. De qualquer forma, o livro foi publicado em 2011 e, de lá pra cá, novas descobertas científicas foram feitas e a ciência, a psicologia e a economia evoluíram muito. Mas, na minha opinião, este livro vale muito a pena e considero este autor um gênio, digno do Prêmio Nobel que recebeu.

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